quinta-feira, 29 de outubro de 2015

PARA QUÊ ESCREVER?

Para quê escrever, pergunto eu.

Para saber quem realmente eu sou,
e talvez só exista se escrever.

Hoje, ao passar a computador as palavras de um dos capítulos que escrevi no passado dia 23 de outubro, comecei a sentir quase o mesmo que uma das personagens do meu romance:

"A minha alma está repleta de ondas e marés, e de frases enigmáticas proferidas por pessoas que não conheço mas que sinto fazerem parte de mim. Contam-me histórias do meu passado como se fossem lendas ou acontecimentos raros, e eu duvido se realmente as vivi. Decerto, nunca existi. Tenho receio de quem sou e sinto pavor desta vida que me trouxe tão depressa até este lugar, e eu que nunca tive pressa de lhe pertencer, não assim, não com este medo que cresce a cada instante e que não me dá alívio. Deixarei de ser capaz de recordar! A tristeza tomou conta dos meus sonhos (...), e agora só escuto vozes que amaldiçoam e já nem sei em que dia me encontro."

Assim é,
as minhas histórias chegam-me do fim do mundo,
de repente
e eu tenho de escrever, senão,
quem embalaria as viagens desses navios?

domingo, 17 de maio de 2015

PRIMEIROS 5 CAPÍTULOS do meu novo ROMANCE

A MENINA QUE TINHA MEDO DE SONHAR

domingo, 17 de maio de 2015

05 - DEIXARAM ESCAPAR O ESPÍRITO DO RIO

Ana Carlota permaneceu debruçada no barco a observar o fundo do rio, e sempre que o sol conseguia espreitar por entre as nuvens fazendo a água brilhar, os telhados cónicos da casa surgiam refletidos e o seu coração batia mais depressa. Ela observava tudo o que se ia passando com a máxima atenção. Detestava sentir aquela sensação de insegurança, mas  bastava olhar para os limos que cobriam o leito do rio e muitas das zonas ao longo daquela margem, para logo se acalmar.
Sem limos, os sonhos de Carlota tornavam-se selvagens, desrespeitadores e caóticos, deixavam de possuir a serenidade necessária para que ela pudesse descansar, por isso aquele passeio com a prima e o avô acontecia na melhor altura.
O dia passava de maneira muito agradável, apesar da pescaria estar a ser fraca. A prima Emília ajudou o avô Tomé a preparar outra dose de engodos, com a mestria de sempre, e mal lançaram à água uma generosa quantidade do preparado, de imediato vislumbraram um raro cardume de carpas a aproximar-se da embarcação, atraídas pela comida. Formavam uma espécie de longa língua ziguezagueante, prateada e cintilante.
O balde de plástico branco onde o avô guardava a mistela mágica estava quase vazio, por isso tudo dependia do que se passasse a seguir. Restava-lhes apenas esperar que um dos anzóis fosse mordido. Eles nem ousavam respirar, e davam pouco uso aos músculos do corpo para manter a quietude. O barco do compadre Jesuíno flutuava com uma nobreza tão respeitadora desses silêncios, que até parecia ter sido ensinado. O pior é que os peixes conseguiam alimentar-se sem serem apanhados. Eram bastante lúcidos e muito sensatos. Ana Carlota achou graça à inteligência demonstrada pelos animais, até parecia que os peixes é que eram os verdadeiros pescadores. Emília deu conta de alguns ousarem colocar a cabeça fora da água para comerem melhor. A pescaria estava quase a transformar-se em fracasso quando o improvável acabou por acontecer. O avô Tomé sentiu um pequeno puxão na cana de pesca, e outro logo a seguir. Era um peixe a morder o anzol, e pela força com que o fazia, devia ser bem crescidinho. Não fosse ele um experimentado pescador, certamente teria deixado o animal escapar, tal foi a força aplicada pela carpa.
A luta tinha começado, o barco abanava, as raparigas tentavam ajudar o avô como podiam, dando-lhe incentivos e conselhos mais ou menos absurdos de como devia proceder para conseguir dominar aquele peixe voluntarioso. Tomé rodava o carreto, e puxava, e voltava a rodar, e teve a certeza de que aquela era a maior das carpas que alguma vez mordera um dos seus anzóis. O espírito do rio tinha sido enganado pelo avô Tomé, e agora os peixes todos sabiam que aquele não era um pescador qualquer.
Carlota começou a ficar assustada e muito enjoada com a forma embrutecida como a luta acontecia. Sentiu pena do espírito do rio e deixou de ajudar o avô, ao contrário da prima, que berrava e gesticulava e não parava de o orientar no combate. O barco balançava imenso, sempre muito agitado em desequilíbrio constante, e um vómito saiu-lhe em forma de jato para cima do avô e da Emília, aquecendo-lhes os tornozelos e os dedos dos pés. Agora é que o dia de pescaria tinha ficado definitivamente estragado. A prima estava muito mal disposta com o sucedido. O aspeto viscoso e repugnante daquela pasta alaranjada que lhe tapava os pés, aliado ao cheiro nauseabundo que dali emanava, fizeram com que também ela acabasse por vomitar. O avô Tomé largou a cana e abandonou a luta para acudir às duas netas que não paravam de vomitar.
O sucedido ficou a dever-se exclusivamente à vontade dos limos, que assim o decidiram. A grande carpa, espírito do rio, foi salva por um momento de fraqueza de Carlota, uma feliz coincidência que parecia destinada a acontecer, mas que só se passou por desejo das algas. Mais tarde, quando tiver adquirido maior experiência de vida, será ela a decidir o que irá acontecer nos seus sonhos. Por agora, terá de aprender a lidar com o desejo dos limos.
- Caramba, meninas! Ora bolas, … acabei por ter de deixar escapar aquela belíssima carpa! Mas como é que vocês ficaram assim tão mal dispostas, raparigas? – perguntou o avô Tomé, algo desalentado.

sexta-feira, 15 de maio de 2015

04 - OS RECEIOS DE CARLOTA



A avó não estava disposta a deixar que o roubo da embarcação pudesse estragar o dia às raparigas, e acabou por telefonar ao compadre Jesuíno para remediar a situação, caso contrário o Tomé ficaria sisudo o resto da semana e ela não estava para lhe aturar os maus humores. Os dias de pescaria passados na companhia das netas eram, de longe, os que ele mais prezava, e Bernardete sabia-o melhor do que ninguém. O compadre era incapaz de deixar por resolver um assunto tão importante, e de imediato fez questão de colocar um barco à sua disposição para que o dia não ficasse estragado, e prontificou-se a levar o bote até ao pequeno pontão junto à oficina de Tomé. A viagem demorava pouco pois eles eram praticamente vizinhos.
- Pronto, está tudo resolvido, meninas! Em breve, o compadre Jesuíno vai trazer-vos um barco, mas vocês ainda têm muito tempo para tomarem o pequeno almoço, e depois… podem ir passear e pescar com o vosso avô tal como estava combinado. Viram, o que é que eu vos disse, não há nada que não tenha solução!
Os olhos quase negros do avô Tomé recuperaram o brilho perdido enquanto ele mordiscava uma torrada. Emília sorriu de contentamento mas para Carlota continuava a ser difícil esconder os seus receios. E se o rio que ela tanto adorava se atrevesse a fazer-lhes o mesmo que lhe tinha feito na noite passada?
Era quase meio-dia e nem o avô Tomé tinha conseguido pescar um peixe que fosse, mesmo depois de ter lançado o seu famoso engodo. Seria possível a iguaria não estar a fazer efeito? A prima Emília chamou a atenção do avô para a invulgar quantidade de barcos que navegam por ali naquela manhã. Eram eles o motivo da fraca pescaria, pois estavam a assustar os peixes.
Depois de mais uns minutos passados no mesmo lugar, Tomé decidiu remar para uma zona mais tranquila que ficava perto da outra margem e de onde se conseguia vislumbrar a mansão em toda a sua grandeza. Metia-lhe pena ver uma propriedade assim ao abandono e num tão avançado estado de ruína.

quinta-feira, 14 de maio de 2015

03 - SONHO OU REALIDADE




A casa era quase uma ruína. Grandes pedaços de estuque tinham-se desprendido dos tetos e das paredes e encontravam-se espalhados ao longo dos corredores e das escadarias da mansão.
Aquilo era triste de se ver, e depois surgiram centenas de serpentes que rastejavam por entre tudo, negras e sibilantes. As cobras tinham chegado transportadas pelo imenso tapete de musgo e de relva que cobriu por completo o telhado cónico do grande torreão, assim como as suas grossas e cilíndricas paredes de pedra.
Carlota fugiu, a correr, sem saber por onde avançar. Encontrava-se no segundo piso da habitação e saltou sem hesitar por uma janela entreaberta. Ficou algum tempo a pairar no vazio, até que chamas bem altas irromperam no telhado do edifício ao mesmo tempo que alguns idosos mal encarados se abeiraram das janelas e começaram a arremessar-lhe pedras ininterruptamente. Alguns desses homens, para quem a vida terá sido uma espécie de doença intolerável, lançaram-se, tal como ela, no espaço vazio. Saltaram e seguiram-na, sem nunca pararem de lhe atirar as muitas pedras que carregavam. Aquelas gotas escuras eram pesadas e feriam-na bastante sempre que lhe acertavam.
Carlota tentou resistir à tentação de olhar para trás enquanto pairava no ar, mas não conseguiu. Ao virar-se, discerniu a casa em chamas e cerca de uma vintena de homens velhos de olhar odioso a esbracejarem na sua direção, até que foi atingida violentamente na cabeça por uma pedra, e desmaiou.
A avó Bernardete reparou na súbita palidez da neta mais velha, e no seu longo silêncio. Ela fitava o infinito com olhos de ausência, olhos mortiços e assustados, até parecia que tinha acabado de ver algum fantasma.
Ana Carlota não se mexia, preferiu ficar quieta à espera que a sensação de desconforto acabasse por desaparecer, como sempre lhe acontecia. Estes episódios – assim os começou a chamar – provocavam-lhe arrepios e um sentimento semelhante ao do pavor, mas não exatamente igual.
Ela detestava ter de passar por aquilo.
Uma tremenda insegurança começou a invadi-la, e tudo passou a ser pior desde essa madrugada quando o rio, seu companheiro confidente, se encheu de limos e deixou de ser o amigo em quem sempre confiara.
O avô Tomé comunicou o desaparecimento do barco à restante família, mas a avó Bernardete, que possuía um apuradíssimo sexto sentido, percebeu que não era só por isso que a sua menina agia daquela maneira tão invulgar.
Ana Carlota viu a sala e a cozinha desaparecerem à frente dos seus olhos. As paredes e o teto da casa dos avós passaram a ser outros, e tudo aconteceu com impressionante rapidez, e a realidade passou, de novo, a ser aquele pesadelo onde a antiga propriedade ardia, onde as cobras rastejavam e os idosos a atacavam à pedrada. A pedra que antes lhe acertou na cabeça, voltara a viajar pelo ar, só que agora voava devagar, muito devagarinho, e ela conseguiu corrigir-lhe a trajetória para não ser atingida. Ao ter concretizado esse incumbência, o avô reapareceu à mesa, tal como a prima Emília, a avó Bernardete, o tio Artur e a tia Josefina.
Carlota teve um sonho mau, um sonho bem real que muito a perturbou. Ela ficou sem saber se estava acordada ou se ainda estaria a sonhar, e foi então que os cães começaram a ladrar.

terça-feira, 12 de maio de 2015

02 - ROUBARAM O BARCO DO AVÔ TOMÉ




O barco desapareceu de um dia para o outro. O avô Tomé ficou triste quando deu conta que o fiel companheiro de pescarias tinha sido roubado. Quem teria sido o autor de semelhante façanha, quem é que se arriscaria a levar uma barcaça velha que apenas possuía valor sentimental? Aquilo devia ter sido uma brincadeira de algum miúdo mais atrevido que achou piada ao barco e o levou a dar um passeio. Provavelmente, foi isso que aconteceu.
O avô Tomé não era pessoa para ficar triste durante muito tempo, nem se arreliava com facilidade, e depressa considerou que o gatuno devia aproveitar o melhor possível a sua viagem.
Ao voltar a casa, foi sentar-se à mesa da cozinha e dar a novidade à avó Bernardete, num tom de desabafo:
- Alguém achou muita graça ao nosso barco e resolveu levá-lo. Olha que os malandros nem foram capazes de nos virem pedir licença! E agora? Como é que eu vou fazer para levar as raparigas à pesca? – perguntou o avô, com ironia na voz.
- Porque não vais falar ao compadre Jesuíno, homem? Talvez ele te consiga arranjar um barquito para remediar a situação. Só consigo pensar no compadre para resolver o assunto. Telefona-lhe, olha que as miúdas estão à espera deste dia desde que chegaram, e tu bem sabes o quanto elas adoram ir à pesca contigo.
A avó Bernardete era perita em encontrar soluções para todo o tipo de problemas, mas custou-lhe aceitar esta notícia. Aos anos que o pequeno barco fazia parte da família. Mas quem é que se lembraria de praticar uma tal patifaria, e logo naquele dia?
Ana Carlota nem queria acreditar no que acabara de escutar. Afinal o bote tinha mesmo sido destruído por um tsunami de limos durante a noite e tudo o que lhe aconteceu naquela madrugada foi mesmo verdade.
E se ela ainda estivesse a dormir?
E se ela ainda estivesse a sonhar e aquela conversa dos avós fizesse parte do sonho que ainda não terminara?
A prima Emília desceu a correr as escadas e gritou dois sonoros bons dias. A tia Josefa e o tio Artur apareceram logo de seguida.
Ana Carlota estava visivelmente incomodada, e não sabia mais no que acreditar.
Afinal de contas, era sonho ou realidade aquilo que estava ali a acontecer?

segunda-feira, 11 de maio de 2015

01 - ANTES DE TODOS OS SONHOS

O SILÊNCIO
O silêncio tem formas
Onde cabem mundos
Em cada pedaço seu
Milhares de sossegos
Com formas singulares
Onde prosperam sonhos desiguais
A eterna dignidade que os caracteriza
É única
Diferente das demais

A ampulheta velha e cansada
Puxa de uma cadeira para se sentar
Sossega
Aprende a respeitar o silêncio
É ele quem desenha rugas
No rosto do tempo
Dentro de um círculo de areia
Construído no cimo de dunas invisíveis

Os pés do silêncio estão cansados
E sangram, e suplicam
racharam as pedras todas ao caminhar

O silêncio tem formas
Onde cabem mundos inexistentes
De ímpar dignidade
 Concebidos para ninguém ter medo de sonhar


Naquele dia tudo aumentou de tamanho e ficou maior do que o mundo.
Carlota acordou assustada no meio do nada, no centro de uma vastidão de branco onde reinava um nevoeiro cerrado, um deserto morno de luz esbranquiçada, afastado de tudo e de todos. Uma vez mais, Carlota estava a ser vítima da sua fértil imaginação, o impensável ameaçava tomar conta dos acontecimentos e começava a virar a realidade do avesso. O pior é que estes episódios estavam a ficar cada vez mais frequentes.
Sempre que isto lhe acontecia ela ficava quieta, à espera que tudo regressasse ao normal, pois não gostava mesmo nada de sentir-se assim, tão insegura e desprotegida. Quando o primeiro desses incidentes aconteceu, Carlota apanhou um susto tremendo e deixou de conseguir raciocinar. Tentou dar ordens aos músculos mas eles não lhe obedeceram, e também perdeu noção do tempo. Ela passou a fazer parte de uma história que não controlava e onde tudo se passava à revelia da sua vontade.
Mas foi naquele dia em que tudo aumentou de tamanho e ficou maior do que o mundo, que uma coisa muito, muito estranha, acabou por lhe acontecer.
Essa é a aventura que Carlota me pediu para vos contar, e a história começa assim:
Era uma vez uma jovem chamada Ana Carlota que ficou com medo de sonhar. De cada vez que ela o fazia, acorriam aos seus sonhos pessoas estranhas vindas de terras sombrias e distantes que só a queriam atormentar. Aquilo eram tudo menos sonhos, aquilo eram pesadelos muito assustadores que ela não conseguia aguentar. De cada vez que ela sonhava, os seus sonhos tornavam-se mais reais, muito mais autênticos e bastante barulhentos. Como qualquer menina sensata e inteligente, Carlota sabia que a sua vida podia tornar-se complicada se ela não fosse capaz de adormecer, mas era isso que lhe estava a acontecer. O medo dos sonhos começou a alterar-lhe os comportamentos, coisa que ela nem imaginava ser possível.
Uma jovem rapariga não pode ter receio de dormir, isso não é nada saudável, e Carlota sabia-o melhor do que ninguém pois era uma jovem estudante de enfermagem que ambicionava abraçar a profissão da tia Josefina e da avó Bernardete, a quem tantas vezes pedia emprestada as batas para brincar quando era mais pequena.
Em casa da avó, onde os tios também viviam, havia sempre comida deliciosa em cima da mesa, e a avó nunca se esquecia de fazer a sua gelatina predileta. O tio Artur trabalhava nos correios e o avô Tomé costumava passar os dias entretido na oficina a fazer pequenos trabalhos de bricolage. A avó Bernardete já estava reformada, mas ainda era requisitada para ajudar na clínica sempre que podia.
Quando Ana Carlota os visitava, adorava fazer passeios de barco até uma linda casa que ficava na outra margem do rio onde habitualmente o avô pescava. A casa era muito grande e estava abandonada, era uma verdadeira mansão com telhados desmedidos, tão grandes e tão altos que pareciam tocar o céu. Ela sabia que a casa estava deserta pois um dia aventurou-se a passar para o lado de dentro da propriedade transpondo um pequeno portão de ferro que foi fácil de galgar. Carlota espreitou através dos vidros sujos das janelas e reparou em móveis tapados por lençóis velhos e gastos, mas ela não se importava com isso pois tinha uma verdadeira paixão por aquela casa, ao ponto de ir logo a correr para junto do rio só para a poder observar, mesmo ao de longe.
Ana Carlota gostava tanto daquela casa que começou a sonhar com ela. Num desses sonhos tornou-se dona da propriedade e dormia no grande quarto do torreão, aquele que possuía a vista mais maravilhosa para o grandioso estuário do rio. Durante três ou quatro dias seguidos não sonhou com outra coisa, e mal o dia raiava, avançava até à margem do rio para ficar entretida a olhar para a mansão, até de tardinha, quando ela tinha de regressar.
Ao chegar à quinta noite, Ana Carlota resolveu viver uma aventura. Pegou numa lanterna do avô Tomé e partiu para uma visita noturna à residência. Estava uma noite agradável, apesar de muito escura, e ficou ainda mais escura quando ela regressou a casa, já de madrugada. A avó sentiu-a chegar àquela hora tardia, mas não lhe disse nada. Aqueceu-lhe um copo de leite e cortou-lhe uma bela fatia de um magnífico bolo de mel.
Carlota não contou nada disto a ninguém, mas naquela noite a casa abandonada não estava desabitada como de costume. O grande salão encontrava-se iluminado e nele acontecia uma gloriosa festa com muitos convidados trajados a preceito. Havia música tocada ao vivo por uma pequena orquestra, para além de comida e bebida em abundância. Os convidados entretinham-se a valsar e ela ficou algo invejosa por nunca ter aprendido a dançar.
Na sexta noite, Ana Carlota atravessou, de novo, o rio até à outra margem. Dessa vez não encontrou nenhum sinal de festa na mansão abandonada. Estava tudo empoeirado e muito velho, as paredes da casa continuavam sujas, mal pintadas e a necessitar de concerto, os jardins exteriores tinham a erva alta, o telhado possuía algumas telhas partidas e a maior parte delas em muito mau estado. A propriedade e a sua grande mansão foram construídas no início do século XX e estavam necessitadas de profundas obras de restauro. A tia Josefa contou-lhe que uma família muito importante vinda do norte pensou adquirir a propriedade e os terrenos adjacentes aos herdeiros dos antigos donos, mas eles pediam uma pequena fortuna, e até hoje ninguém sabe, ao certo, se o negócio se concretizou.
Carlota passou a ter medo de sonhar.
As pessoas que tinha visto a dançar na grande mansão eram estranhas como fantasmas, e foram ter consigo com sorrisos falsos estampados nos rostos. Ao início pareciam amigáveis, mas ela depressa passou a ter outra opinião. Uma dessas mulheres visitantes roubou-lhe a lanterna do avô Tomé e só lha devolveu depois de Carlota lhe ter prometido trazer um grande cesto de flores do campo acabadas de colher. A senhora apertou-lhe as mãos com muita força, e acabou por arrastá-la para fora do salão, puxando-a ainda para mais longe, até à entrada do pequeno bosque que dominava as traseiras da propriedade. Passeou com Ana Carlota durante algum tempo, e depois levou-a até ao barco que estava atracado junto à margem do rio. Voltou a pedir-lhe o cesto de flores, com a lanterna na mão, e disse-lhe ter gostado muito de a ter conhecido e de ter conversado acerca de coisas de que não era hábito falar com mais ninguém.
Ana Carlota era livre quando sonhava.
Nos seus sonhos o que mais gostava de fazer era de conseguir vestir roupas e coisas diferentes, e tinha muito prazer quando viajava ou assistia a bonitas cerimónias, ou quando dançava, coisa que na realidade não conseguia fazer.
Mas os sonhos começaram a assustá-la naquela quinta noite. Pela primeira vez ela sentiu-se verdadeiramente ameaçada num sonho. Quando começou a remar de regresso a casa, tudo o conhecia começou a aumentar de tamanho e a ficar maior do que o mundo. O rio e a casa e o céu e os pássaros noturnos, e os remos e a pequena embarcação do avô Tomé cresceram tanto, mas tanto, que ela quase morreu de susto.
Aquilo foi o sonho mais estranho que alguma vez lhe tinha acontecido. A mansão transformou-se num castelo gigantesco protegido por grandes labirintos feitos de sebes espinhosas e guardado por fantasmas paladinos. Um vento ciclónico chegou no exato instante em que tudo cresceu, e até o seu quarto favorito passou a ser um alto e escuro torreão iluminado por relâmpagos e fustigado por chuvas torrenciais. Demorou uma pequena eternidade a atravessar o rio onde o musgo e a relva começavam a prosperar. O barco foi devorado por um tsunami de verde, a casa foi engolida por um maremoto de musgo e o torreão foi atacado por um imenso tapete de relva que rapidamente o cercou e engoliu.
Ana Carlota acordou, e sentiu-se tão sozinha. Desceu as escadas do quarto até à cozinha da casa da avó Bernardete, e a chuva intensa que não parava, e ela tropeçou, e quase tombou, mas não caiu. Ficou exausta nessa noite, febril, por causa do sonho. Atravessou o rio descalça, por cima do musgo e da relva que ali nasceram, até o seu lado da margem. Encontrou a avó à sua espera, sentada na cozinha, com uma bela fatia de bolo de mel e uma chávena de leite morno.
Carlota costumava ter sonhos simpáticos onde dias bonitos de primavera podiam durar semanas, e onde as amizades persistiam a vida inteira, uma vida que durava o tempo desses sonhos. Eram filmes que tinha guardados dentro de si e que assim lhe contavam as histórias, ora de maneira rápida, ora muito vagarosamente.
O avô Tomé gostava de levar as netas a pescar. A prima Emília usava uns óculos redondos muito engraçados. Nenhum deles conseguiu pescar um único peixe naquele dia, mas Ana Carlota não se importava. Ela achava aqueles momentos muito divertidos. Era tão bom estarem os três juntos a fazer passar o tempo devagar, e o rio parecia que crescia de cada vez que iam à pesca, mas isso era uma coisa difícil de explicar. As suas águas limpas entretinham-se a cantar canções de embalar. Outras vezes, contavam-lhes histórias de fazer chorar acerca das vidas das pessoas que habitavam todas as casas e mansões que se estendiam ao longo de cada uma das suas margens.
Naquela manhã de pescaria, a janela da velha mansão encontrava-se aberta. Era a exata janela do quarto que Carlota acreditava poder vir um dia a ser o seu, e o rio brilhou mais que nos outros dias.

quinta-feira, 16 de abril de 2015

EXERCÍCIO elaborado na aula de quinta-feira - 16 de abril



Desenha a perspectiva dimétrica da forma composta pelo seguinte conjunto de sólidos:
Eixos:
O eixo x faz ângulos de 115° com o eixo y e com o eixo z.
Sólido 1:
Cubo com 6 cm de aresta com as faces paralelas aos planos de projecção.
A base inferior tem 2 cm de cota. Uma face frontal tem 3 cm de afastamento. Uma face de perfil tem 2 de abcissa.
Sólido 2:
Cubo assente na base superior  do sólido 1. Os vértices da base inferior deste cubo coincidem com os pontos médios dos lados da base superior do primeiro cubo.
No final, destaca, apenas, as arestas visíveis da forma resultante.
(método dos cortes)



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© José-António Moreira

segunda-feira, 23 de março de 2015

MULHERES MANTA

Esta bem que podia ser CECÍLIA,
a mulher-manta, personagem do meu
último romance ( O LAGO DAS ESTÁTUAS DE PEDRA ).

Baila Cecília, nadando,
 como quem voa devagar
debaixo das ondas do mar
onde apenas os deuses
podem respirar

 e as mulheres-manta...

LUGARES SECRETOS


" Naquele dia, Adelaide não encontrou o irmão. O rapaz tinha saído bem cedo pela manhã, para que ninguém o impedisse de ir até ao ribeiro. Corria sempre até lá, sozinho, e nunca mencionou a existência daquele “seu” lugar secreto, nem mesmo à irmã, apesar de ela conhecer muito bem a sua localização. Álvaro regressou ao fim da tarde, completamente encharcado, com a roupa colada ao corpo. Riu-se, nervoso, como um tolinho, temendo que a irmã lhe fosse colar a mão à cara como o pai fazia. Os dois ficaram ali a olhar um para o outro, sem se mexerem, em silêncio, até a madeira do soalho ficar tão molhada como os pés e as pernas e todo o menino, que se manteve quieto, com medo do que a irmã lhe pudesse fazer.
- Álvaro, olha bem para ti, miúdo! – disse Adelaide, com a sua voz doce e melodiosa – Vem comigo, tens a roupa toda ensopada e vais ter de te despir. Anda, chega aqui para te aqueceres perto do lume, antes que te constipes.
Lá fora o mundo tinha parado, as ramagens pararam de balançar, o vento já não soprava. Adelaide cresceu depressa e cedo se habituou a pensar e a tratar dos homens da casa. Os dois avançaram até bem perto da lareira da cozinha onde as chamas crepitavam e o calor se fazia sentir. A luz das labaredas tremeluziam e faziam luzir a pedra escura de granito junto à qual Álvaro se começou a enxugar.
- Come! – disse Adelaide, oferecendo-lhe um naco de broa que tinha acabado de cortar – Tinha quase a certeza de que tinhas ido até esse “teu” lugar preferido. Passas tanto tempo a olhar para o ribeiro, a lançar-lhe pedras e a bater com os pés na água, que qualquer dia até te vais esquecer de regressar.
O rapazinho estava agachado pertinho do lume onde o fogo dançava. Segurou o pão e trincou-o de imediato, com a água a escorrer-lhe pelos cabelos abaixo. Fazia oito anos nesse dia."


in O LAGO DAS ESTÁTUAS DE PEDRA

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

RELEMBRAR 70 anos da libertação de AUSCHWITZ



" - As cidades do holocausto, as várias cidades onde a humanidade se pulverizou, jamais irão desaparecer. Trouxe-vos até aqui pois a janela da minha sala mostrou as vistas desta triste história que muitos gostariam de apagar de todas as memórias. O tempo parece ser um inimigo da razão, pois envolve-a com teias finas mas poderosas. Teias fortemente emaranhadas, poeirentas e sombrias. Nada do que ali se passou pode ser esquecido.
Milhares de judeus formam grandes filas indianas e perfilam-se na grande praça central, obedecendo às ordens dos militares alemães. Mais um comboio acaba de chegar e os prisioneiros obedecem a tudo o que lhes é comunicado sem abrir a boca, sem resistir, sem quase ousar respirar. As lágrimas descem, silenciosas, pelos rostos, ao contrário da chuva gelada que cai sonora dos céus e os encharca sem piedade.
Quatro corpos são arrastados para fora de uma das carruagens, já sem vida, já sem cor. Os homens escolhidos para a empreitada estão tão magros e tão ausentes que a lentidão com que a realizam acaba de assinar-lhes sentença de morte. Caíram com o rosto virado para o chão enlameado, abatidos pela Luger do Obersturmbannführer que os vigiava. Nem assim as lágrimas dos que assistem se tornaram menos silenciosas. As vozes de comando escutam-se por todo o recinto e as filas avançam, ordenadas, até que a mais que provável morte os venha reclamar.
- Aqui tudo está errado! O facto de tudo estar a preto-e-branco é aquilo que menos choca nesta cidade. A cor, a única cor visível é o vermelho que escorre para o chão, o mesmo vermelho que empapa os parcos agasalhos, que pinta os rostos e adorna as feridas e que coagula depressa com a ajuda da temperatura negativa que já se faz sentir.
A chuva dá lugar à neve que começa agora a cair. Passa meia hora e o nevão ganha força suficiente para que a neve pegue. Aos mais cansados e derrotados o frio traz a morte embrulhada no sono. A companheira visita-os de madrugada e acabam por não acordar.
- Vais dormir aqui, terás de pernoitar nestas casernas do desalento. Obedece a todas as ordens, cumpre fielmente todas as rotinas, não penses, não reajas, não sufoques. Disseram-me para aqui te trazer e para aqui te abandonar. Perderás a cor, ficarás preto-e-branco como estes camaradas de infortúnio. Os dias e as noites que aqui passares irão moldar-te. É evidente que não serás o mesmo após esta experiência, isso, claro, se fores capaz de sair com vida desta cidade.
O sol desapareceu, os perfumes são outros, a realidade aqui parece ficção. Falam-se tantas línguas como em Babel, falam-se e escutam-se palavras em checo, palavras neerlandesas, búlgaras, italianas, romenas, espanholas, húngaras, francesas, russas, gregas, albanesas. Agora, neste comboio, chegaram também vozes portuguesas. São registadas nos livros, catalogadas para sempre. Num futuro distante, menos inquieto, menos negro, dilacerado e desumanizado, recordar-se-á tudo o que hoje aqui aconteceu.
- A tua obra vai ter de ficar parada por mais algum tempo. Quando quiseres, assim que te sentires apto a regressar, chama por mim, mas nunca antes de terem passado sete dias e sete noites. Essa é a cláusula que não podes quebrar, mas após esse período chama-me a qualquer instante para regressarmos às cidades que conhecemos.
Olhos negros, muito negros e profundos, todos os olhos negros e cansados e profundos viram-se para o escritor arrependido.
Esta noite está a ser gelada e incolor. Sussurros, lamentos, tímidas lágrimas vão dando sinais das muitas nações que aqui se encontram. Todos esperam que a morte os venha buscar de madrugada.
As fortes luzes dos holofotes do campo de concentração pintam sombras negras nas paredes de madeira da camarata 72. Entram por entre as frinchas e as janelas despidas. Juntam-se às sirenes, à escuridão da noite branca, da noite cada vez mais fria e branca e longa. Esta é a noite mais longa de todas as noites que o escritor viveu.
Agora chegou a hora de dormir.
Da janela da camarata os prisioneiros avistam uma cidade doente, fria, branca, cinzenta, cruel e tão real como reais são os vermelhos que os companheiros de infortúnio trazem pintado nos frágeis farrapos que os cobrem.
- Faltam sete dias e sete noites para que eu possa regressar! – pensa o escritor numa imensa aflição.
Agora chegou a hora de dormir!"


segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

ÓSCARES 2015 - primeiras impressões

Todos os anos se repete o acontecimento mais badalado do cinema. Por esta altura, em Los Angeles, são anunciados os filmes e candidatos à mais famosa das estatuetas. Por esta altura se cometem injustiças e, tal como em anos anteriores, este ano voltam a ser cometidos alguns pecados capitais. Filmes que deviam ter sido nomeados não o foram, atores e atrizes que deviam ter sido nomeados, não o foram, realizadores que deviam ter sido nomeados, não o foram... enfim, mais do mesmo.
Lamentos de quem ama o cinema e considera que este devia ser o momento e o local para a consagração de quem é, de facto, o melhor nas suas categorias.
A academia não o faz, antes aproveita para manter e/ou promover aqueles que melhor se adaptam à sua "política" e as injustiças saltam aos olhos de todos os bons cinéfilos, principalmente os mais atentos e de gostos mais "europeus".
Falemos então de um nome que devia constar da lista dos melhores realizadores e argumentistas.- WOODY ALLEN!
Nem mais. O seu filme "Magic in the Moonlight" http://www.imdb.com/title/tt2870756/?ref_=nm_flmg_wr_3 é um dos seus melhores trabalhos, e passa completamente ao lado destes óscares 2015. Imperdoável.
Outro lamentável equívoco pela sonora e estridente ausência dos nomeados é a do ator inglês Timothy Spall, que fez um inesquecível e brilhante trabalho na "construção" do pintor inglês William Turner, papel que, aliás, lhe granjeou o título de melhor ator em Cannes, melhor ator pelo America's National Society of Film Critics, melhor ator pela NYFCC, melhor ator no Capri - Hollywood International Film Festival, e melhor ator nos  European Film  Awards. Passa também ao lado dos óscares deste ano.
E mais ainda terei para vos dizer. Contudo, fica desde já uma certeza. 2014 foi um ano em que os atores e atrizes britânicas voltaram a estar "por cima", e em todas as categorias faltam nomes que a academia fez questão em não destacar, como o de Ralph Fiennes ( no filme Grand Budapest Hotel ), ou Colin Firth ( no fime "Magic in the Moonlight", do realizador Woody Allen ).
Ainda assim há muitos britânicos nomeados para os óscares deste ano, e dois dos mais ferozes candidatos ao óscar de ator principal são ingleses. Falo de Benedict Cumberbatch, em Imitation Game, e de Eddie Redmayne, em A Teoria de Tudo.
Quanto ao melhor filme e realizador, um filme destaca-se claramente de todos os outros, assim como o seu realizador! Falo de Grand Budapest Hotel, de  . Na minha modesta opinião, o melhor dos filmes nomeados para estes óscares de 2015.
 


Até breve...
e Bom CiNEMA!!!
 

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

NAVEGAR É PRECISO, VIVER NÃO É PRECISO

Os marinheiros sabem melhor do que ninguém qual é o verdadeiro peso da solidão, e de como ela se transforma naquela coisa insuportável que se entranha nos corpos e na alma e os transforma em estátuas.
Assim se esculpem os novos habitantes do fundo do mar, afastados uns dos outros por ordens expressas da dona morte.
Abandonados em isolamento, permanecem escondidos no mais profundo dos silêncios, numa escuridão quase total.
Descansam em águas tão profundas e geladas que nem o tempo por lá se atreve a passear.

Tudo quanto penso,
Tudo quanto sou
É um deserto imenso
Onde nem eu estou.

Extensão parada
Sem nada a estar ali,
Areia peneirada
Vou dar-lhe a ferroada
Da vida que vivi.

Fernando Pessoa

 

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