A MENINA QUE TINHA MEDO DE SONHAR
domingo, 17 de maio de 2015
05 - DEIXARAM ESCAPAR O ESPÍRITO DO RIO
Ana Carlota permaneceu debruçada no barco a observar
o fundo do rio, e sempre que o sol conseguia espreitar por entre as nuvens
fazendo a água brilhar, os telhados cónicos da casa surgiam refletidos e o seu
coração batia mais depressa. Ela observava tudo o que se ia passando com a
máxima atenção. Detestava sentir aquela sensação de insegurança, mas bastava olhar para os limos que cobriam o
leito do rio e muitas das zonas ao longo daquela margem, para logo se acalmar.
Sem limos, os sonhos de Carlota tornavam-se
selvagens, desrespeitadores e caóticos, deixavam de possuir a serenidade
necessária para que ela pudesse descansar, por isso aquele passeio com a prima
e o avô acontecia na melhor altura.
O dia passava de maneira muito agradável, apesar da
pescaria estar a ser fraca. A prima Emília ajudou o avô Tomé a preparar outra
dose de engodos, com a mestria de sempre, e mal lançaram à água uma generosa
quantidade do preparado, de imediato vislumbraram um raro cardume de carpas a
aproximar-se da embarcação, atraídas pela comida. Formavam uma espécie de longa
língua ziguezagueante, prateada e cintilante.
O balde de plástico branco onde o avô guardava a
mistela mágica estava quase vazio, por isso tudo dependia do que se passasse a
seguir. Restava-lhes apenas esperar que um dos anzóis fosse mordido. Eles nem
ousavam respirar, e davam pouco uso aos músculos do corpo para manter a
quietude. O barco do compadre Jesuíno flutuava com uma nobreza tão respeitadora
desses silêncios, que até parecia ter sido ensinado. O pior é que os peixes
conseguiam alimentar-se sem serem apanhados. Eram bastante lúcidos e muito
sensatos. Ana Carlota achou graça à inteligência demonstrada pelos animais, até
parecia que os peixes é que eram os verdadeiros pescadores. Emília deu conta de
alguns ousarem colocar a cabeça fora da água para comerem melhor. A pescaria estava
quase a transformar-se em fracasso quando o improvável acabou por acontecer. O
avô Tomé sentiu um pequeno puxão na cana de pesca, e outro logo a seguir. Era
um peixe a morder o anzol, e pela força com que o fazia, devia ser bem
crescidinho. Não fosse ele um experimentado pescador, certamente teria deixado
o animal escapar, tal foi a força aplicada pela carpa.
A luta tinha começado, o barco abanava, as raparigas
tentavam ajudar o avô como podiam, dando-lhe incentivos e conselhos mais ou
menos absurdos de como devia proceder para conseguir dominar aquele peixe
voluntarioso. Tomé rodava o carreto, e puxava, e voltava a rodar, e teve a
certeza de que aquela era a maior das carpas que alguma vez mordera um dos seus
anzóis. O espírito do rio tinha sido enganado pelo avô Tomé, e agora os peixes
todos sabiam que aquele não era um pescador qualquer.
Carlota começou a ficar assustada e muito enjoada
com a forma embrutecida como a luta acontecia. Sentiu pena do espírito do rio e
deixou de ajudar o avô, ao contrário da prima, que berrava e gesticulava e não
parava de o orientar no combate. O barco balançava imenso, sempre muito agitado
em desequilíbrio constante, e um vómito saiu-lhe em forma de jato para cima do
avô e da Emília, aquecendo-lhes os tornozelos e os dedos dos pés. Agora é que o
dia de pescaria tinha ficado definitivamente estragado. A prima estava muito
mal disposta com o sucedido. O aspeto viscoso e repugnante daquela pasta alaranjada
que lhe tapava os pés, aliado ao cheiro nauseabundo que dali emanava, fizeram
com que também ela acabasse por vomitar. O avô Tomé largou a cana e abandonou a
luta para acudir às duas netas que não paravam de vomitar.
O sucedido ficou a dever-se exclusivamente à vontade
dos limos, que assim o decidiram. A grande carpa, espírito do rio, foi salva
por um momento de fraqueza de Carlota, uma feliz coincidência que parecia
destinada a acontecer, mas que só se passou por desejo das algas. Mais tarde,
quando tiver adquirido maior experiência de vida, será ela a decidir o que irá
acontecer nos seus sonhos. Por agora, terá de aprender a lidar com o desejo dos
limos.
- Caramba, meninas! Ora bolas, … acabei por ter de
deixar escapar aquela belíssima carpa! Mas como é que vocês ficaram assim tão
mal dispostas, raparigas? – perguntou o avô Tomé, algo desalentado.
sexta-feira, 15 de maio de 2015
04 - OS RECEIOS DE CARLOTA
A avó não estava disposta a deixar que o roubo da
embarcação pudesse estragar o dia às raparigas, e acabou por telefonar ao compadre
Jesuíno para remediar a situação, caso contrário o Tomé ficaria sisudo o resto
da semana e ela não estava para lhe aturar os maus humores. Os dias de pescaria
passados na companhia das netas eram, de longe, os que ele mais prezava, e
Bernardete sabia-o melhor do que ninguém. O compadre era incapaz de deixar por
resolver um assunto tão importante, e de imediato fez questão de colocar um
barco à sua disposição para que o dia não ficasse estragado, e prontificou-se a
levar o bote até ao pequeno pontão junto à oficina de Tomé. A viagem demorava
pouco pois eles eram praticamente vizinhos.
- Pronto, está tudo resolvido, meninas! Em breve, o
compadre Jesuíno vai trazer-vos um barco, mas vocês ainda têm muito tempo para
tomarem o pequeno almoço, e depois… podem ir passear e pescar com o vosso avô
tal como estava combinado. Viram, o que é que eu vos disse, não há nada que não
tenha solução!
Os olhos quase negros do avô Tomé recuperaram o
brilho perdido enquanto ele mordiscava uma torrada. Emília sorriu de
contentamento mas para Carlota continuava a ser difícil esconder os seus receios.
E se o rio que ela tanto adorava se atrevesse a fazer-lhes o mesmo que lhe tinha
feito na noite passada?
Era quase meio-dia e nem o avô Tomé tinha conseguido
pescar um peixe que fosse, mesmo depois de ter lançado o seu famoso engodo. Seria
possível a iguaria não estar a fazer efeito? A prima Emília chamou a atenção do
avô para a invulgar quantidade de barcos que navegam por ali naquela manhã. Eram
eles o motivo da fraca pescaria, pois estavam a assustar os peixes.
Depois de mais uns minutos passados no mesmo lugar, Tomé
decidiu remar para uma zona mais tranquila que ficava perto da outra margem e de
onde se conseguia vislumbrar a mansão em toda a sua grandeza. Metia-lhe pena ver
uma propriedade assim ao abandono e num tão avançado estado de ruína.
quinta-feira, 14 de maio de 2015
03 - SONHO OU REALIDADE
A casa era quase uma ruína. Grandes pedaços de
estuque tinham-se desprendido dos tetos e das paredes e encontravam-se
espalhados ao longo dos corredores e das escadarias da mansão.
Aquilo era triste de se ver, e depois surgiram centenas
de serpentes que rastejavam por entre tudo, negras e sibilantes. As cobras
tinham chegado transportadas pelo imenso tapete de musgo e de relva que cobriu
por completo o telhado cónico do grande torreão, assim como as suas grossas e
cilíndricas paredes de pedra.
Carlota fugiu, a correr, sem saber por onde avançar.
Encontrava-se no segundo piso da habitação e saltou sem hesitar por uma janela
entreaberta. Ficou algum tempo a pairar no vazio, até que chamas bem altas
irromperam no telhado do edifício ao mesmo tempo que alguns idosos mal
encarados se abeiraram das janelas e começaram a arremessar-lhe pedras
ininterruptamente. Alguns desses homens, para quem a vida terá sido uma espécie
de doença intolerável, lançaram-se, tal como ela, no espaço vazio. Saltaram e seguiram-na,
sem nunca pararem de lhe atirar as muitas pedras que carregavam. Aquelas gotas
escuras eram pesadas e feriam-na bastante sempre que lhe acertavam.
Carlota tentou resistir à tentação de olhar para
trás enquanto pairava no ar, mas não conseguiu. Ao virar-se, discerniu a casa
em chamas e cerca de uma vintena de homens velhos de olhar odioso a
esbracejarem na sua direção, até que foi atingida violentamente na cabeça por
uma pedra, e desmaiou.
A avó Bernardete reparou na súbita palidez da neta
mais velha, e no seu longo silêncio. Ela fitava o infinito com olhos de ausência,
olhos mortiços e assustados, até parecia que tinha acabado de ver algum
fantasma.
Ana Carlota não se mexia, preferiu ficar quieta à
espera que a sensação de desconforto acabasse por desaparecer, como sempre lhe
acontecia. Estes episódios – assim os começou a chamar – provocavam-lhe arrepios
e um sentimento semelhante ao do pavor, mas não exatamente igual.
Ela detestava ter de passar por aquilo.
Uma tremenda insegurança começou a invadi-la, e tudo
passou a ser pior desde essa madrugada quando o rio, seu companheiro
confidente, se encheu de limos e deixou de ser o amigo em quem sempre confiara.
O avô Tomé comunicou o desaparecimento do barco à
restante família, mas a avó Bernardete, que possuía um apuradíssimo sexto sentido,
percebeu que não era só por isso que a sua menina agia daquela maneira tão invulgar.
Ana Carlota viu a sala e a cozinha desaparecerem à frente
dos seus olhos. As paredes e o teto da casa dos avós passaram a ser outros, e tudo
aconteceu com impressionante rapidez, e a realidade passou, de novo, a ser aquele
pesadelo onde a antiga propriedade ardia, onde as cobras rastejavam e os idosos
a atacavam à pedrada. A pedra que antes lhe acertou na cabeça, voltara a viajar
pelo ar, só que agora voava devagar, muito devagarinho, e ela conseguiu corrigir-lhe
a trajetória para não ser atingida. Ao ter concretizado esse incumbência, o avô
reapareceu à mesa, tal como a prima Emília, a avó Bernardete, o tio Artur e a tia
Josefina.
Carlota teve um sonho mau, um sonho bem real que muito
a perturbou. Ela ficou sem saber se estava acordada ou se ainda estaria a sonhar,
e foi então que os cães começaram a ladrar.
terça-feira, 12 de maio de 2015
02 - ROUBARAM O BARCO DO AVÔ TOMÉ
O barco desapareceu de um dia para o outro. O avô
Tomé ficou triste quando deu conta que o fiel companheiro de pescarias tinha
sido roubado. Quem teria sido o autor de semelhante façanha, quem é que se
arriscaria a levar uma barcaça velha que apenas possuía valor sentimental?
Aquilo devia ter sido uma brincadeira de algum miúdo mais atrevido que achou piada
ao barco e o levou a dar um passeio. Provavelmente, foi isso que aconteceu.
O avô Tomé não era pessoa para ficar triste durante
muito tempo, nem se arreliava com facilidade, e depressa considerou que o
gatuno devia aproveitar o melhor possível a sua viagem.
Ao voltar a casa, foi sentar-se à mesa da cozinha e
dar a novidade à avó Bernardete, num tom de desabafo:
- Alguém achou muita graça ao nosso barco e resolveu
levá-lo. Olha que os malandros nem foram capazes de nos virem pedir licença! E
agora? Como é que eu vou fazer para levar as raparigas à pesca? – perguntou o avô,
com ironia na voz.
- Porque não vais falar ao compadre Jesuíno, homem?
Talvez ele te consiga arranjar um barquito para remediar a situação. Só consigo
pensar no compadre para resolver o assunto. Telefona-lhe, olha que as miúdas
estão à espera deste dia desde que chegaram, e tu bem sabes o quanto elas
adoram ir à pesca contigo.
A avó Bernardete era perita em encontrar soluções
para todo o tipo de problemas, mas custou-lhe aceitar esta notícia. Aos anos
que o pequeno barco fazia parte da família. Mas quem é que se lembraria de
praticar uma tal patifaria, e logo naquele dia?
Ana Carlota nem queria acreditar no que acabara de
escutar. Afinal o bote tinha mesmo sido destruído por um tsunami de limos
durante a noite e tudo o que lhe aconteceu naquela madrugada foi mesmo verdade.
E se ela ainda estivesse a dormir?
E se ela ainda estivesse a sonhar e aquela conversa
dos avós fizesse parte do sonho que ainda não terminara?
A prima Emília desceu a correr as escadas e gritou
dois sonoros bons dias. A tia Josefa e o tio Artur apareceram logo de seguida.
Ana Carlota estava visivelmente incomodada, e não
sabia mais no que acreditar.
Afinal de contas, era sonho ou realidade aquilo que
estava ali a acontecer?
segunda-feira, 11 de maio de 2015
01 - ANTES DE TODOS OS SONHOS
O SILÊNCIO
O silêncio tem formas
Onde cabem mundos
Em cada pedaço seu
Milhares de sossegos
Com formas singulares
Onde prosperam sonhos desiguais
A eterna dignidade que os caracteriza
É única
Diferente das demais
A ampulheta velha e cansada
Puxa de uma cadeira para se sentar
Sossega
Aprende a respeitar o silêncio
É ele quem desenha rugas
No rosto do tempo
Dentro de um círculo de areia
Construído no cimo de dunas invisíveis
Os pés do silêncio estão cansados
E sangram, e suplicam
racharam as pedras todas ao caminhar
O silêncio tem formas
Onde cabem mundos inexistentes
De ímpar dignidade
Concebidos para
ninguém ter medo de sonhar
Naquele dia tudo
aumentou de tamanho e ficou maior do que o mundo.
Carlota acordou
assustada no meio do nada, no centro de uma vastidão de branco onde reinava um
nevoeiro cerrado, um deserto morno de luz esbranquiçada, afastado de tudo e de
todos. Uma vez mais, Carlota estava a ser vítima da sua fértil imaginação, o
impensável ameaçava tomar conta dos acontecimentos e começava a virar a
realidade do avesso. O pior é que estes episódios estavam a ficar cada vez mais
frequentes.
Sempre que isto
lhe acontecia ela ficava quieta, à espera que tudo regressasse ao normal, pois
não gostava mesmo nada de sentir-se assim, tão insegura e desprotegida. Quando o
primeiro desses incidentes aconteceu, Carlota apanhou um susto tremendo e
deixou de conseguir raciocinar. Tentou dar ordens aos músculos mas eles não lhe
obedeceram, e também perdeu noção do tempo. Ela passou a fazer parte de uma
história que não controlava e onde tudo se passava à revelia da sua vontade.
Mas foi naquele
dia em que tudo aumentou de tamanho e ficou maior do que o mundo, que uma coisa
muito, muito estranha, acabou por lhe acontecer.
Essa é a aventura
que Carlota me pediu para vos contar, e a história começa assim:
Era uma vez uma jovem chamada Ana Carlota que ficou
com medo de sonhar. De cada vez que ela o fazia, acorriam aos seus sonhos
pessoas estranhas vindas de terras sombrias e distantes que só a queriam
atormentar. Aquilo eram tudo menos sonhos, aquilo eram pesadelos muito assustadores
que ela não conseguia aguentar. De cada vez que ela sonhava, os seus sonhos tornavam-se
mais reais, muito mais autênticos e bastante barulhentos. Como qualquer menina
sensata e inteligente, Carlota sabia que a sua vida podia tornar-se complicada
se ela não fosse capaz de adormecer, mas era isso que lhe estava a acontecer. O
medo dos sonhos começou a alterar-lhe os comportamentos, coisa que ela nem
imaginava ser possível.
Uma jovem rapariga não pode ter receio de dormir, isso não é nada saudável, e Carlota sabia-o melhor do que ninguém pois era uma jovem estudante de enfermagem que ambicionava abraçar a profissão da tia Josefina e da avó Bernardete, a quem tantas vezes pedia emprestada as batas para brincar quando era mais pequena.
Uma jovem rapariga não pode ter receio de dormir, isso não é nada saudável, e Carlota sabia-o melhor do que ninguém pois era uma jovem estudante de enfermagem que ambicionava abraçar a profissão da tia Josefina e da avó Bernardete, a quem tantas vezes pedia emprestada as batas para brincar quando era mais pequena.
Em casa da avó, onde os tios também viviam, havia
sempre comida deliciosa em cima da mesa, e a avó nunca se esquecia de fazer a
sua gelatina predileta. O tio Artur trabalhava nos correios e o avô Tomé
costumava passar os dias entretido na oficina a fazer pequenos trabalhos de
bricolage. A avó Bernardete já estava reformada, mas ainda era requisitada para
ajudar na clínica sempre que podia.
Quando Ana Carlota os visitava, adorava fazer
passeios de barco até uma linda casa que ficava na outra margem do rio onde habitualmente
o avô pescava. A casa era muito grande e estava abandonada, era uma verdadeira
mansão com telhados desmedidos, tão grandes e tão altos que pareciam tocar o
céu. Ela sabia que a casa estava deserta pois um dia aventurou-se a passar para
o lado de dentro da propriedade transpondo um pequeno portão de ferro que foi
fácil de galgar. Carlota espreitou através dos vidros sujos das janelas e
reparou em móveis tapados por lençóis velhos e gastos, mas ela não se importava
com isso pois tinha uma verdadeira paixão por aquela casa, ao ponto de ir logo
a correr para junto do rio só para a poder observar, mesmo ao de longe.
Ana Carlota gostava tanto daquela casa que começou a
sonhar com ela. Num desses sonhos tornou-se dona da propriedade e dormia no
grande quarto do torreão, aquele que possuía a vista mais maravilhosa para o
grandioso estuário do rio. Durante três ou quatro dias seguidos não sonhou com
outra coisa, e mal o dia raiava, avançava até à margem do rio para ficar entretida
a olhar para a mansão, até de tardinha, quando ela tinha de regressar.
Ao chegar à quinta noite, Ana Carlota resolveu viver
uma aventura. Pegou numa lanterna do avô Tomé e partiu para uma visita noturna
à residência. Estava uma noite agradável, apesar de muito escura, e ficou ainda
mais escura quando ela regressou a casa, já de madrugada. A avó sentiu-a chegar
àquela hora tardia, mas não lhe disse nada. Aqueceu-lhe um copo de leite e
cortou-lhe uma bela fatia de um magnífico bolo de mel.
Carlota não contou nada disto a ninguém, mas naquela
noite a casa abandonada não estava desabitada como de costume. O grande salão encontrava-se
iluminado e nele acontecia uma gloriosa festa com muitos convidados trajados a
preceito. Havia música tocada ao vivo por uma pequena orquestra, para além de
comida e bebida em abundância. Os convidados entretinham-se a valsar e ela
ficou algo invejosa por nunca ter aprendido a dançar.
Na sexta noite, Ana Carlota atravessou, de novo, o
rio até à outra margem. Dessa vez não encontrou nenhum sinal de festa na mansão
abandonada. Estava tudo empoeirado e muito velho, as paredes da casa
continuavam sujas, mal pintadas e a necessitar de concerto, os jardins
exteriores tinham a erva alta, o telhado possuía algumas telhas partidas e a
maior parte delas em muito mau estado. A propriedade e a sua grande mansão
foram construídas no início do século XX e estavam necessitadas de profundas
obras de restauro. A tia Josefa contou-lhe que uma família muito importante
vinda do norte pensou adquirir a propriedade e os terrenos adjacentes aos
herdeiros dos antigos donos, mas eles pediam uma pequena fortuna, e até hoje
ninguém sabe, ao certo, se o negócio se concretizou.
Carlota passou a ter medo de sonhar.
As pessoas que tinha visto a dançar na grande mansão
eram estranhas como fantasmas, e foram ter consigo com sorrisos falsos
estampados nos rostos. Ao início pareciam amigáveis, mas ela depressa passou a
ter outra opinião. Uma dessas mulheres visitantes roubou-lhe a lanterna do avô
Tomé e só lha devolveu depois de Carlota lhe ter prometido trazer um grande
cesto de flores do campo acabadas de colher. A senhora apertou-lhe as mãos com
muita força, e acabou por arrastá-la para fora do salão, puxando-a ainda para
mais longe, até à entrada do pequeno bosque que dominava as traseiras da
propriedade. Passeou com Ana Carlota durante algum tempo, e depois levou-a até
ao barco que estava atracado junto à margem do rio. Voltou a pedir-lhe o cesto
de flores, com a lanterna na mão, e disse-lhe ter gostado muito de a ter
conhecido e de ter conversado acerca de coisas de que não era hábito falar com
mais ninguém.
Ana Carlota era livre quando sonhava.
Nos seus sonhos o que mais gostava de fazer era de
conseguir vestir roupas e coisas diferentes, e tinha muito prazer quando
viajava ou assistia a bonitas cerimónias, ou quando dançava, coisa que na
realidade não conseguia fazer.
Mas os sonhos começaram a assustá-la naquela quinta
noite. Pela primeira vez ela sentiu-se verdadeiramente ameaçada num sonho.
Quando começou a remar de regresso a casa, tudo o conhecia começou a aumentar
de tamanho e a ficar maior do que o mundo. O rio e a casa e o céu e os pássaros
noturnos, e os remos e a pequena embarcação do avô Tomé cresceram tanto, mas
tanto, que ela quase morreu de susto.
Aquilo foi o sonho mais estranho que alguma vez lhe tinha
acontecido. A mansão transformou-se num castelo gigantesco protegido por
grandes labirintos feitos de sebes espinhosas e guardado por fantasmas
paladinos. Um vento ciclónico chegou no exato instante em que tudo cresceu, e
até o seu quarto favorito passou a ser um alto e escuro torreão iluminado por
relâmpagos e fustigado por chuvas torrenciais. Demorou uma pequena eternidade a
atravessar o rio onde o musgo e a relva começavam a prosperar. O barco foi
devorado por um tsunami de verde, a casa foi engolida por um maremoto de musgo
e o torreão foi atacado por um imenso tapete de relva que rapidamente o cercou
e engoliu.
Ana Carlota acordou, e sentiu-se tão sozinha. Desceu
as escadas do quarto até à cozinha da casa da avó Bernardete, e a chuva intensa
que não parava, e ela tropeçou, e quase tombou, mas não caiu. Ficou exausta
nessa noite, febril, por causa do sonho. Atravessou o rio descalça, por cima do
musgo e da relva que ali nasceram, até o seu lado da margem. Encontrou a avó à
sua espera, sentada na cozinha, com uma bela fatia de bolo de mel e uma chávena
de leite morno.
Carlota costumava ter sonhos simpáticos onde dias
bonitos de primavera podiam durar semanas, e onde as amizades persistiam a vida
inteira, uma vida que durava o tempo desses sonhos. Eram filmes que tinha
guardados dentro de si e que assim lhe contavam as histórias, ora de maneira rápida,
ora muito vagarosamente.
O avô Tomé gostava de levar as netas a pescar. A prima
Emília usava uns óculos redondos muito engraçados. Nenhum deles conseguiu pescar
um único peixe naquele dia, mas Ana Carlota não se importava. Ela achava aqueles
momentos muito divertidos. Era tão bom estarem os três juntos a fazer passar o tempo
devagar, e o rio parecia que crescia de cada vez que iam à pesca, mas isso era uma
coisa difícil de explicar. As suas águas limpas entretinham-se a cantar canções
de embalar. Outras vezes, contavam-lhes histórias de fazer chorar acerca das vidas
das pessoas que habitavam todas as casas e mansões que se estendiam ao longo de
cada uma das suas margens.
Naquela manhã de pescaria, a janela da velha mansão encontrava-se
aberta. Era a exata janela do quarto que Carlota acreditava poder vir um dia a ser
o seu, e o rio brilhou mais que nos outros dias.