Nesse longínquo ano de 1755, no dia 1 de Novembro, Lisboa foi abalada pelo maior terramoto que a Europa alguma vez sentiu.
As consequências devastadoras desse acontecimento ecoaram por toda a parte!
Como é imensa a pequenez do ser humano e como é incompreensível o santo poder do Senhor!
A ira Divina abateu-se inclemente sobre a capital do reino e logo neste dia de Todos os Santos, matando dezenas de milhares, fazendo o mar entrar pela cidade destruída tudo engolindo à sua frente.
Se alguém duvidava que tudo pode desaparecer e mudar no curto espaço de segundos, o dia de hoje servirá para todo o sempre como prova do poder inimaginável das circunstâncias divinas e das suas sagradas combinações.
escrito em - 21 DE SETEMBRO DE 2009
PRIMEIRO ACTO - continuação VII
( RAFAELA )
É terrível o que se está a passar lá em baixo. As minhas pernas continuam tão fracas. Contrastam com as dores que se fazem sentir intensas no meio da minha alma. São capazes de a destruir. O meu senhor Lefebvre estará vivo? O que será desta nossa vida sem restar de pé uma única parede, sem que as águas engulam de um só trago os restos dos corpos destroçados, alguns ainda cheios de vida mas presos contra as suas vontades no meio das pedras e do entulho que os tapa como uma colcha de morte. Vejo nos rostos das pessoas, destes homens e mulheres enérgicos e corajosos tanto desespero e tanta dor. Cresce em nós a impossibilidade de obter resposta à pergunta que todos lançam aos céus sem mover os lábios, sem libertar um único som que seja nessa função. Porquê Deus Nosso Senhor Todo-poderoso, porquê? Será porventura possível teres abandonado tantos devotos, teres marcado este dia tão especial com a marca mais fatal das forças do Demónio? Deixá-lo tomar conta desta nossa cidade para dela fazer um joguete, para despedaçá-la a seu bel-prazer, para inundá-la lançando pelas suas ruas, vielas, praças e escadarias um mar embrutecido que tudo engole na maior das fúrias e sem qualquer aviso? Afinal és um Deus pouco poderoso, um aliado vil desse outro destrutivo monstro que se entretém a derrubar Lisboa pedra a pedra, fachada por fachada, que mata e semeia pelas ruas da cidade milhares de cadáveres e uma imensidão de ruínas. O povo está derrotado, o Mundo inteiro tem de saber desta Tua traição. Afinal de contas que Deus és Tu que nos abandonaste, que te esqueceste deste povo honrado que tanto te estima e venera? Nada poderá ser como já foi. A dor por Vós aqui derramada fará memória. Ninguém poderá esquecer este dia em que Deus faltou a todo um povo, a toda uma cidade, a todo um País. Ninguém, ninguém! Para qualquer dos locais para onde olhe, desde a ribeira, desde o cais, desde as torres do palácio por onde os barcos passam arrastados e se esmagam contra as paredes do edifício, transportados às costas por uma segunda onda gigantesca que avança pela cidade até quase ao Rossio, até quase ao Hospital de Todos os Santos.
Tenho de ganhar a coragem necessária para descer até aos infernos que ali em baixo se agitam. Lefebvre não pode estar morto, não seria justo. O seu amigo médico por algum motivo nos alertou antes desta catástrofe se abater sobre a cidade. Esse é outro estranho desígnio para o qual nem vale a pena tentar arranjar explicação. Quantas vezes também nos meus sonhos se parecem antecipar acontecimentos com o peso gigantesco e quase cruel do realismo. São tantas as noites passadas em claro após pesadelos dessa espécie. São tão reais que mesmo depois de acordada me parece estranho encontrar-me do lado de cá dessas histórias. Muitas são as vezes que me vejo mais velha do que sou, ou a passear por locais que desconheço mas que de tão familiares não me causam qualquer estranheza. Ou como daquela vez em que, alagada em suor, quase vim para a rua descontrolada por pensar ser eu capaz de voar, tamanha a leveza e a rapidez com que senti o meu corpo levantar voo e passear ligeiro por cima das árvores, ora descendo a pique ora subindo acelerado na direcção das nuvens brancas mais distantes. Ou de uma outra em que fui capaz de descrever todos os movimentos que Lefebvre executou quando tratou dos muitos feridos do grande incêndio que destruiu parte do hospital agora novamente em ruínas. Eu, que nunca me atrevi sequer a colocar um pé que fosse nos degraus que dão acesso à capela do edifício, quanto mais conhecer os procedimentos, as formas ou os gestos necessários para auxiliar moribundos ou enfermos. E nesse estranho sonho, acompanhava o meu Lefebvre na sua missão de auxílio, limpando e preparando os doentes com grande mestria e à vontade, cozendo, sarando e tratando das diferentes fases dos tratamentos e das operações como se em toda a minha vida não tivesse eu feito outra coisa. Esta misteriosa capacidade dos sonhos, esta misteriosa capacidade que possuem de desembrulhar mensagens ou histórias de coisas que parecem estar para acontecer, é algo que todos nós sentimos mas que preferimos manter escondida na maior das seguranças. No fundo de quem somos, por vezes, as vontades e os receios misturam-se como um guisado de imagens e sabores secretos que explodem destas maneiras tão reais, tão intensas, em muitos de nossos sonhos. E graças ao seu misterioso poder, esse poder que se revelou nesta madrugada ao médico ilustre amigo de Lefebvre, aqui estou viva para testemunhar esta tragédia. Viva e assustada como uma criança perdida. Se alguém duvidava que tudo pode desaparecer e mudar no curto espaço de segundos, o dia de hoje servirá para todo o sempre como prova do poder inimaginável das circunstâncias divinas e das suas sagradas combinações.
em honra de todas as vítimas da tragédia de Lisboa
1 de Novembro de 1775
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